terça-feira, 26 de junho de 2012

Alemanha: o "pesadelo inflacionista" do primeiro pós-Guerra.

O primeiro pós-Guerra confrontou a Europa com problemas que não tinham tido, até então, precedentes. Embora muitas dessas questões tivessem uma natureza política, certo é que, uma outra parte considerável desses problemas estava ligada a questões de natureza económica que atirariam a Europa, de um modo geral, para um período de grande instabilidade. Pelo seu impacto financeiro, bem como pela desorganização geral que os conflitos armados provocaram na generalidade das economias e dos sistemas financeiros europeus, o preço da Guerra foi, indubitavelmente, elevado: depauperados pela Guerra, a maior parte dos países europeus colocou-se perante uma difícil situação de reconstrução e reconversão económicas que, no limite, originariam uma espiral de endividamento - público e privado; interno e externo - a que se associou, como consequência, um problema de desvalorização monetária. A conjugação destes factores acabaria por lançar a Europa, pela primeira vez, para um problema macroeconómico que, para além de não merecer a atenção da generalidade dos economistas, era pouco conhecido. Estamos a falar da Inflação que, em Economia, representa um contínuo e generalizado aumento dos preços face a uma queda significativa do poder de compra.
O século XIX é o século da industrialização. De facto, a Revolução Industrial possibilitaria aos países europeus com tradições mais liberais o desenvolvimento de um modelo económico - o Capitalismo - que se estruturasse na iniciativa privada e na livre circulação de capitais, pessoas e bens. Embora a generalidade dos países tenham conhecido um considerável surto de desenvolvimento económico no século XIX e no início do século XX, a verdade é que esse crescimento não foi contínuo: a economia de mercado do século XIX esteve sujeita a regulares e periódicas flutuações de mercado, algo que se traduziria, não só numa crítica ao próprio sistema como um modelo que estaria condenado à auto-destruição, mas nas primeiras crises que afectariam as principais economias europeias. Estas crises - cíclicas e periódicas - eram ainda, contudo, estruturais, típicas de um capitalismo que estava ainda a desenvolver-se longe da esfera de intervenção do Estado. Deste modo, a inflação como fenómeno macroeconómico é praticamente desconhecida no século XIX e mesmo antes do primeiro pós-Guerra, altura em que se torna um fenómeno recorrente nas economias europeias.
A Paz de Versalhes impôs pesadas sanções económicas, não só sobre a Alemanha, mas também sobre os seus aliados de guerra: a Áustria e a Hungria. Contudo, viria a ser a Alemanha a quem iria caber a penosa tarefa de se estrear no "pesadelo" da inflação que, aqui, teve proporções especialmente dramáticas: quando a delegação alemã em Versalhes assinou um Tratado que não negociou, mas que lhe foi imposto, a Alemanha estava à beira da bancarrota. Como se não fosse suficiente a derrota e a bancarrota originada pelo esforço de guerra, as Potências Aliadas, em virtude de cláusulas de culpa, impuseram ao país um pesado esforço financeiro para que pudesse proceder ao pagamento das indemnizações e reparaçõesa que estava obrigado internacionalmente - quando em 1921 as Potências Aliadas fixam o montante das indemnizações em 132 biliões de marcos, esse valor correspondia, grosso modo, a metade da riqueza total do país. Este problema teria, por seu turno, uma agravante: para proceder ao pagamento dos valores a que estava obrigada a Alemanha estava impedida, pelo Tratado, de recorrer ao crédito de outros países, ao contrário do Reino Unido e da França que, na qualidade de países indemnizados, podiam recorrer ao mercado de crédito através de condições particularmente vantajosas. O governo alemão teve, portanto, de encontrar uma solução concreta e, neste sentido, o que se afigurou mais prático foi recorrer ao mecanismo de emissão de moeda, ou seja, produção de mais dinheiro. Com a emissão considerável de moeda, o problema económico alemão teve uma dimensão ainda maior: o aumento da produção de moeda veio, na prática, alimentar a já grave crise inflacionista do pós-Guerra num contexto em que a quantidade de moeda em circulação era desmesuradamente desproporcional à quantidade de bens disponíveis.
Ao contexto macroeconómico de inflação veio juntar-se, como consequência, um problema concreto de desvalorização monetária que se tornava cada vez mais evidente quando, no mercado cambial, o marco alemão era comparado a outras moedas fortes da época: a Libra e o Dólar. No começo de 1922, um dólar americano valia 200 marcos alemães. No final desse mesmo ano, já valia 10.000 marcos. Quando a França e a Bélgica ocuparam a rica zona industrial do Ruhr, estava preparada uma hecatombe na economia alemã: em Julho de 1923 era preciso um milhão de marcos para comprar um dólar americano; no final de Setembro já eram necessários 160 milhões de marcos e, em Novembro, vários biliões - o índice de inflação na Alemanha tinha variado, entre 1919 e 1923, um trilião por cento. A este ritmo alucinante, tornou-se necessário manter o que era já um movimento "normal" da economia, não só para assegurar a continuidade do pagamento das indemnizações, mas para alimentar um sistema financeiro que estava á beira do colapso. Deste modo, trezentas fábricas de papel consignavam toda a sua produção à alimentação de cerca de cento e cinquenta tipografias onde rodavam, dia e noite, duas mil prensas de notas. Numa economia decapitada, até os munícipios e as empresas receberam do governo alemão o direito de fabricar moeda, uma moeda que servia agora, não só para brincadeira de crianças, mas também para ser queimada nas salamandras das habitações para as aquecer nos Invernos mais rigorosos.
A situação conheceu alguma estabilidade logo no final de 1923 e a partir de 1924. A Chancelaria de Gustav Stresemann (1878 - 1929) conseguiu dominar um clima latente de instabilidade e restaurar alguma credibilidade ao sistema financeiro e monetário: o crédito foi brutalmente restringido e a Alemanha passou a adoptar uma robusta política de disciplina orçamental. Todavia, não devemos descurar as posições de outros países que se aperceberam da gravidade e daquilo que podia representar o problema económico alemão. Por um lado, o Reino Unido nunca se opôs ao pagamento de indemnizações pela Alemanha, mas conseguiu aperceber-se de que a ruína constante da economia alemã era prejudicial para a economia britânica e podia levar, por arrasto, ao colapso da economia europeia; por outro lado, os Estados Unidos sempre adoptaram uma posição própria em relação à Alemanha, o que os levou, não só a negociar uma paz separada com os alemães - Tratado de Berlim de 1921 -, mas também a adoptar uma política diferente face à situação económica quando se aperceberam que a eminência de colapso da economia europeia podia começar na Alemanha e alastrar-se, consequentemente, aos Estados Unidos. Porém, os efeitos da inflação foram muito mais duradouros do que a própria inflação: a economia alemã levaria anos a recuperar e, bem assim, o descrédito da República de Weimar tornou-se latente e tão progressivo que, quando em 1929 rebenta a primeira grande crise económica mundial, voltam à tona velhos problemas e velhas crises - a Alemanha estava à beira de rejeitar o Tratado de Versalhes e as condições que lhe foram impostas. Mas os efeitos permaneceram e o povo alemão nunca esqueceu aqueles dias. A inflação na Alemanha não é só um problema macroeconómico; é um trauma.

Bibliografia de referência:
 - FELDMAN, Gerald D., The Great Disorder: Politics, Economics and Society in the German Inflation, 1914-1924, Oxford, Oxford University Press, 1997;
 - FERGUSSON, Adam, When Money Dies: The Nightmare of Deficit Spending, Devaluation and Hyperinflation in Weimar Germany, London, PublicAffairs, 2010;
 - KEYNES, John Maynard, The economic consequences of Peace, London, CreateSpace, 2011.

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