terça-feira, 26 de junho de 2012

Anne Frank, an unfinished story.


http://www.ushmm.org/museum/exhibit/online/af/htmlsite/index.html

Alemanha: o "pesadelo inflacionista" do primeiro pós-Guerra.

O primeiro pós-Guerra confrontou a Europa com problemas que não tinham tido, até então, precedentes. Embora muitas dessas questões tivessem uma natureza política, certo é que, uma outra parte considerável desses problemas estava ligada a questões de natureza económica que atirariam a Europa, de um modo geral, para um período de grande instabilidade. Pelo seu impacto financeiro, bem como pela desorganização geral que os conflitos armados provocaram na generalidade das economias e dos sistemas financeiros europeus, o preço da Guerra foi, indubitavelmente, elevado: depauperados pela Guerra, a maior parte dos países europeus colocou-se perante uma difícil situação de reconstrução e reconversão económicas que, no limite, originariam uma espiral de endividamento - público e privado; interno e externo - a que se associou, como consequência, um problema de desvalorização monetária. A conjugação destes factores acabaria por lançar a Europa, pela primeira vez, para um problema macroeconómico que, para além de não merecer a atenção da generalidade dos economistas, era pouco conhecido. Estamos a falar da Inflação que, em Economia, representa um contínuo e generalizado aumento dos preços face a uma queda significativa do poder de compra.
O século XIX é o século da industrialização. De facto, a Revolução Industrial possibilitaria aos países europeus com tradições mais liberais o desenvolvimento de um modelo económico - o Capitalismo - que se estruturasse na iniciativa privada e na livre circulação de capitais, pessoas e bens. Embora a generalidade dos países tenham conhecido um considerável surto de desenvolvimento económico no século XIX e no início do século XX, a verdade é que esse crescimento não foi contínuo: a economia de mercado do século XIX esteve sujeita a regulares e periódicas flutuações de mercado, algo que se traduziria, não só numa crítica ao próprio sistema como um modelo que estaria condenado à auto-destruição, mas nas primeiras crises que afectariam as principais economias europeias. Estas crises - cíclicas e periódicas - eram ainda, contudo, estruturais, típicas de um capitalismo que estava ainda a desenvolver-se longe da esfera de intervenção do Estado. Deste modo, a inflação como fenómeno macroeconómico é praticamente desconhecida no século XIX e mesmo antes do primeiro pós-Guerra, altura em que se torna um fenómeno recorrente nas economias europeias.
A Paz de Versalhes impôs pesadas sanções económicas, não só sobre a Alemanha, mas também sobre os seus aliados de guerra: a Áustria e a Hungria. Contudo, viria a ser a Alemanha a quem iria caber a penosa tarefa de se estrear no "pesadelo" da inflação que, aqui, teve proporções especialmente dramáticas: quando a delegação alemã em Versalhes assinou um Tratado que não negociou, mas que lhe foi imposto, a Alemanha estava à beira da bancarrota. Como se não fosse suficiente a derrota e a bancarrota originada pelo esforço de guerra, as Potências Aliadas, em virtude de cláusulas de culpa, impuseram ao país um pesado esforço financeiro para que pudesse proceder ao pagamento das indemnizações e reparaçõesa que estava obrigado internacionalmente - quando em 1921 as Potências Aliadas fixam o montante das indemnizações em 132 biliões de marcos, esse valor correspondia, grosso modo, a metade da riqueza total do país. Este problema teria, por seu turno, uma agravante: para proceder ao pagamento dos valores a que estava obrigada a Alemanha estava impedida, pelo Tratado, de recorrer ao crédito de outros países, ao contrário do Reino Unido e da França que, na qualidade de países indemnizados, podiam recorrer ao mercado de crédito através de condições particularmente vantajosas. O governo alemão teve, portanto, de encontrar uma solução concreta e, neste sentido, o que se afigurou mais prático foi recorrer ao mecanismo de emissão de moeda, ou seja, produção de mais dinheiro. Com a emissão considerável de moeda, o problema económico alemão teve uma dimensão ainda maior: o aumento da produção de moeda veio, na prática, alimentar a já grave crise inflacionista do pós-Guerra num contexto em que a quantidade de moeda em circulação era desmesuradamente desproporcional à quantidade de bens disponíveis.
Ao contexto macroeconómico de inflação veio juntar-se, como consequência, um problema concreto de desvalorização monetária que se tornava cada vez mais evidente quando, no mercado cambial, o marco alemão era comparado a outras moedas fortes da época: a Libra e o Dólar. No começo de 1922, um dólar americano valia 200 marcos alemães. No final desse mesmo ano, já valia 10.000 marcos. Quando a França e a Bélgica ocuparam a rica zona industrial do Ruhr, estava preparada uma hecatombe na economia alemã: em Julho de 1923 era preciso um milhão de marcos para comprar um dólar americano; no final de Setembro já eram necessários 160 milhões de marcos e, em Novembro, vários biliões - o índice de inflação na Alemanha tinha variado, entre 1919 e 1923, um trilião por cento. A este ritmo alucinante, tornou-se necessário manter o que era já um movimento "normal" da economia, não só para assegurar a continuidade do pagamento das indemnizações, mas para alimentar um sistema financeiro que estava á beira do colapso. Deste modo, trezentas fábricas de papel consignavam toda a sua produção à alimentação de cerca de cento e cinquenta tipografias onde rodavam, dia e noite, duas mil prensas de notas. Numa economia decapitada, até os munícipios e as empresas receberam do governo alemão o direito de fabricar moeda, uma moeda que servia agora, não só para brincadeira de crianças, mas também para ser queimada nas salamandras das habitações para as aquecer nos Invernos mais rigorosos.
A situação conheceu alguma estabilidade logo no final de 1923 e a partir de 1924. A Chancelaria de Gustav Stresemann (1878 - 1929) conseguiu dominar um clima latente de instabilidade e restaurar alguma credibilidade ao sistema financeiro e monetário: o crédito foi brutalmente restringido e a Alemanha passou a adoptar uma robusta política de disciplina orçamental. Todavia, não devemos descurar as posições de outros países que se aperceberam da gravidade e daquilo que podia representar o problema económico alemão. Por um lado, o Reino Unido nunca se opôs ao pagamento de indemnizações pela Alemanha, mas conseguiu aperceber-se de que a ruína constante da economia alemã era prejudicial para a economia britânica e podia levar, por arrasto, ao colapso da economia europeia; por outro lado, os Estados Unidos sempre adoptaram uma posição própria em relação à Alemanha, o que os levou, não só a negociar uma paz separada com os alemães - Tratado de Berlim de 1921 -, mas também a adoptar uma política diferente face à situação económica quando se aperceberam que a eminência de colapso da economia europeia podia começar na Alemanha e alastrar-se, consequentemente, aos Estados Unidos. Porém, os efeitos da inflação foram muito mais duradouros do que a própria inflação: a economia alemã levaria anos a recuperar e, bem assim, o descrédito da República de Weimar tornou-se latente e tão progressivo que, quando em 1929 rebenta a primeira grande crise económica mundial, voltam à tona velhos problemas e velhas crises - a Alemanha estava à beira de rejeitar o Tratado de Versalhes e as condições que lhe foram impostas. Mas os efeitos permaneceram e o povo alemão nunca esqueceu aqueles dias. A inflação na Alemanha não é só um problema macroeconómico; é um trauma.

Bibliografia de referência:
 - FELDMAN, Gerald D., The Great Disorder: Politics, Economics and Society in the German Inflation, 1914-1924, Oxford, Oxford University Press, 1997;
 - FERGUSSON, Adam, When Money Dies: The Nightmare of Deficit Spending, Devaluation and Hyperinflation in Weimar Germany, London, PublicAffairs, 2010;
 - KEYNES, John Maynard, The economic consequences of Peace, London, CreateSpace, 2011.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Sociedade das Nações: o Comité para o Estudo do Estatuto Jurídico da Mulher (1938)

O movimento sufragista em Nova Iorque - 1912
A criação de um Comité especializado para estudo do estatuto jurídico da mulher e para a discussão do seu papel na Sociedade prossegue um movimento geral que reconhece, por um lado, o papel cada vez mais mais interventivo das mulheres e, por outro lado, a necessidade de incorporar no sufrágio univeral das Democracias liberais uma camada da Sociedade que discutia e reivindicava um papel cada vez mais interventivo nos processos políticos. De facto, o pensamento sufragista baseava-se num ideal democrático igualitário daquilo que deveria ser o "universo" do sufrágio universal. Assim, a mulher de finais do século XIX e inícios do século XX reconhece-se progressivamente não representada por leis e disposições legais que não discute e que não vota, mas que lhe são impostas. Era esta e essência do Movimento Sufragista e daquilo que as próprias sufragistas propugnavam: a reivindicação; a procura pelo estabelecimento do pleno exercício dos direitos civis e políticos das mulheres.
Foram pioneiras deste movimento mulheres como Hubertine Auclert (1848 - 1914), pioneira do movimento em França que, em 1881, lança e dirige uma revista mensal - La Citoyenne - que vociferava em defesa da emancipação das mulheres e do seu livre exercício de direitos. No Reino Unido, é impossível deixar de ter em conta o papel siginificativo de Emmeline Pankhurst (1858 - 1928), fundadora e personificadora do movimento sufragista britânico através da Women's Social and Political Union (1898), uma organização que se particularizou for um forte intervencionismo dentro das instituições políticas. Quando morreu em 1928 a sua conquista tinha sido realizada: as mulheres eram, no Reino Unido, cidadãs de pleno direito.
O Comité para o Estudo do Estatuto Jurídico da Mulher foi, de um modo geral, ambicioso: procurou fazer um trabalho exaustivo sobre aquilo que era e deveria ser o estatuto da mulher na Sociedade. Contudo, não deixaria de ser irónico que a maioria do Comité fosse integrado por homens e apenas três mulheres. Apesar da ambição, os trabalhos desempenhados foram praticamente infrutíferos: tendo sido formado em Abril de 1938, acabaria por ser dissolvido no início de 1939. A Sociedade das Nações era já um organismo internacional incapaz e cada vez mais alvo de descrédito. O mundo estava prestes a precipitar-se numa nova Guerra Mundial.

Esta publicação é dedicada à Rita Rente.

domingo, 24 de junho de 2012

Porque a História também são imagens.




"Success is not final, failure is not fatal: it is the courage to continue that counts"

Sir Winston Leonard Spencer Churchill (1874 - 1965)

Alemanha 1919-1923: em torno de questões territoriais, militares e económicas.

Uma demonstração de protesto do povo alemão frente ao Reichstag perante a eminência de assinatura do TratadoVersalhes.
Berlim, 15 de Maio de 1919.
Mais do que uma simples fotografia o que temos na imagem superior é um espelho que nos fornece, não só o sentimento alemão, mas também a verdadeira dimensão do seu problema. Optando por uma linha de continuidade da publicação anterior, quando dissémos que a estratégia diplomática para a Paz se concretizou, na prática, numa opção por estabelecer uma cláusula culposa de guerra para os germânicos, devemos centrar-nos exclusivamente na dimensão do problema sob a perspectiva alemã. A imagem apresentada revela-nos mais do que uma manifestação de indivíduos anónimos perante uma situação que se agravava em cada escalada; ela revela-nos a própria essência do século XX: as massas, os debates, os extremos. De facto, a assinatura do Tratado de Versalhes foi seguida - embora a delegação alemã em Paris tivesse sido colocada em condições que impossibilitavam qualquer tipo de negociação - de um amplo debate entre as lideranças políticas alemãs mas, apesar de uma necessidade demonstrada em debater e em propror opções para a Paz europeia, os Aliados mostraram-se inflexíveis e souberam usar de uma posição de fragilidade alemã em proveito próprio: no mês de Junho de 1919 apresentaram ao governo alemão um ultimatum estabelecendo um clausulado em que a ou Alemanha assinaria e aceitaria sem reservas as condições de paz impostas pelo tratado ou as hostilidades, perante um cenário de recusa dos alemães em assinar o Tratado, seriam imediatamente retomadas. Deste modo, o que temos é uma estratégia de paz que opta pelo enfraquecimento alemão territorialmente, militarmente e economicamente.
O antigo Império Alemão - II.º Reich -, que entretanto havia sido dissolvido em 1918 e substituído por uma República parlamentar em 1919, incorporava comunidades e Nações das quais se veria forçado a abdicar, não só porque se estabeleceu na Paz de Versalhes um princípio de autodeterminação das nacionalidades submetidas aos Impérios, mas porque uma das cláusulas do Tratado de Versalhes isso mesmo estabeleceu e impôs aos alemães. Neste sentido, a Alsácia e a Lorena - incorporadas na Alemanha pelo Tratado de Frankfurt (1871) após a vitória na Guerra Franco-Prussiana - seriam reintegradas na soberania francesa (artigo 51.º do Tratado de Versalhes). De outro modo, a Alemanha seria obrigada a reconhecer e a respeitar a independência da Áustria, algo a que se associou uma obrigatoriedade de reconhecer que esta independência seria inalienável sem o consentimento da Sociedade das Nações - disposição confirmada pelo Tratado de Saint-Germain-en-Laye (1919) para evitar uma tentativa de Anchluss entre os dois territórios (artigo 80.º do Tratado de Versalhes). A Alemanha seria obrigada, do mesmo modo, a reconhecer a completa independência da Checoslováquia e da Polónia (artigos 81.º e 87.º do Tratado de Versalhes). O Tratado de Versalhes confirmaria ainda uma total disciplina sobre outros territórios alemães: a Jutlândia do Sul seria devolvida à Dinamarca se assim fosse decidido por um plebiscito na região; as cidades de Eupen e Malmedy seriam restituídas à Bélgica; a província do Sarre seria entregue a um mandato da Sociedade das Nações por um período de quinze anos e, finalmente, a cidade de Danzig (actualmente Gdansk) foi transformada na Cidade Livre de Danzig sob tutela directa da Sociedade das Nações. As imposições territoriais foram, todavia, para além dos territórios europeus: de facto, a Alemanha foi obrigada a renunciar, em favor das principais Potências Aliadas, a todos os direitos e títulos de soberania sobre as possessões ultramarinas (artigo 119.º do Tratado de Versalhes) algo que se verificou, não apenas através de uma transferência directa de direitos de soberania para os Aliados, mas também através de mandatos concedidos à Sociedade das Nações.
Contudo, para além de soberana de um vasto território, a Alemanha era uma potência a nível militar. Tornou-se evidente que, de acordo com uma estratégia de pacificação pelo enfraquecimento da Alemanha, também as sanções impostas pelo Tratado de Versalhes se destinavam a enfraquecer o poder militar alemão. Neste sentido, a Alemanha ficaria expressamente proibida de manter ou construir fortificações na margem esquerda e direita do Reno bem como seria proibida de conservar ou manter forças armadas neste território, a título vitalício ou temporário (artigos 42.º e 43.º do Tratado de Versalhes). Por outro lado, a Alemanha foi obrigada a desmobilizar as suas forças armadas e a reduzi-las às condições tipificadas no Tratado de Versalhes (artigo 159.º). A contradição deste clausulado traduzir-se-ia, caso fosse verificável, na consideração da Alemanha como uma ameaça à Paz mundial (artigo 44.º do Tratado de Versalhes). A construção deste cenário confirmou, verdadeiramente, uma circunstância vexatória para a Alemanha: as Potências Aliadas não tinham qualquer intenção de que o Reichswehr (exército) se mantivesse forte e, portanto, a Alemanha seria desarmada, privada de uma força aérea, armas pesadas, tanques e de uma marinha de guerra - dos 74 navios aprisionados pelos britânicos em Scapa Flow, 70 foram ao fundo por ordens expressas, proferidas em 21 de Junho de 1919, do contra-Almirante Ludwig von Reuter que, sabendo da assinatura do Tratado de Versalhes, recusou render-se e entregar os navios à marinha de guerra britânica. O exército alemão ficaria, então, reduzido a um corpo de 100.000 voluntários.
Desde o final do século XIX que a Alemanha se havia constituído como a principal potência industrial da Europa. Era evidente que, aniquilando a Alemanha economicamente, o país se tornaria no elo mais fraco do jogo das Nações e  a sua preponderância em termos internacionais seria irrelevante. Neste sentido, a estratégia de culpabilização da Alemanha repercutiu-se, também, no campo económico quando se convencionou impor à Alemanha o pagamento de indemnizações por todos os danos causados pela Guerra. De facto, o Tratado de Versalhes estabeleceu uma cláusula de culpa de guerra e estipulou que a Alemanha e todos os seus aliados seriam responsáveis pelos danos e prejuízos sofridos pelos governos dos Aliados, em consequência de uma guerra que não pediram mas que lhes foi antes imposta. Assim, a Alemanha ficaria obrigada ao pagamento de indemnizações e reparações de guerra: o valor das indemnizações foi decidido por uma comissão especializada para o efeito e criada, em 1919, pelo Tratado de Versalhes tendo como intermediários as principais Potências Aliadas. No ano de 1921 o valor monetário foi oficializado em 269 biliões de marcos alemães, dos quais 226 biliões seriam a parcela principal a que se somariam mais 12% do valor das exportações anuais alemãs. Ainda no mesmo ano essa dívida foi reduzida para 132 biliões de marcos que os Aliados não se cansavam de exigir, o que era, ainda, uma soma astronómica para o produto interno e para os economistas alemães. O Tratado de Versalhes impôs também à Alemanha o dever de distribuir carvão às Potências, e a França, por seu turno, não se poupava a exigências: já que os conflitos haviam destruído grandes minas de carvão em solo francês, a França exploraria durante um período de 15 anos uma grande parte das reservas de carvão alemãs (sobretudo as do Ruhr) como compensação por aquelas que estes lhes tinham destruído. Contudo, o Presidente W. Wilson não desejava este tipo de comportamento dos Aliados face à Alemanha e gastou muito do seu tempo a arquitectar uma solução para conter os impulsos punitivos dos Aliados. De outro modo, a Grã-Bretanha adoptaria uma posição sui generis na realpolitik internacional: fazendo finca-pé na defesa dos seus interesses económicos, não foi contra o pagamento de indemnizações pela Alemanha, mas depressa  se apercebeu que uma Alemanha arruinada jamais seria capaz de importar produtos britânicos.
De facto, foram necessários dez anos, uma hiperinflação ruinosa para a Alemanha e uma depressão económica a nível mundial para levar os Aliados, num derradeiro acto de consciência, a recuar. Na década de 30 já era demasiado tarde - as imposições feitas à Alemanha e as contradições inerentes às condições do Tratado de Versalhes tornar-se-iam tão óbvias que, a prazo, só se poderiam traduzir num comportamento: o não cumprimento dessas mesmas condições. A Europa tomou a atitude esquizofrénica de fantasiar um monstro; um monstro tão sonhado, tão pensado, que ela própria o criou. Os tratados e os armistícios ditos de "paz e amizade" pretenderam criar uma Europa em Paz; mas a paz assentou mais numa ausência efectiva de guerra do que numa convivência pacífica e harmoniosa entre as Nações e era, por isso, relativa. Os acordos internacionais foram, portanto, demasiado frágeis e insuficientes para resolver os problemas decorrentes da guerra e mesmo aqueles que foram herdados antes do seu começo: o descrédito dos acordos, das organizações e das próprias lideranças associados a um empobrecimento contínuo da Alemanha foram uma das consequências mais desastrosas do paradigma de Versalhes e John Maynard Keynes (1883-1946) escrevia, já em 1919, em The Economic consequences of Peace, "Estamos na época morta dos nossos destinos. Fomos levados para lá da resistência, e precisamos de descansar. Nunca na vida dos homens a chama do elemento universal ardeu tão baixo na alma humana. (...) Quem pode dizer quanto podem aguentar os homens, ou em que direcção irão eles procurar, por fim, escapar aos seus infortúnios?" Infelizmente, a questão teve resposta.

Bibliografia de referência:
 - The Treaty of Versailles (ed. Manfred F. Boemeke), New York, Cambridge University Press, 2006;
 - ANDELMAN, David A., A Shattered Peace: Versailles 1919 and the price we pay today, New Jersey, John Wiley & Sons, 2008;
 - GRAEBNER, Norman A. & BENNETT, Edward M., The Versailles Treaty and its legacy. The Failure of the Wilsonian Vision, New York, Cambridge University Press, 2011;
 - MACMILLAN, Margaret, Peacemakers - Six months that change the World: The Paris Peace Conference of 1919 and its attempt to end war, London, John Murray, 2003;
 - SHEPLEY, Nick, Britain, France and Germany and the Treaty of Versailles: how the Allies built a flawed peace, London, AUK Authors, 2011;


sábado, 23 de junho de 2012

Diplomacia no início do século XX: o Tratado de Versalhes e a questão alemã.

As negociações diplomáticas durante a Conferência de Paz de 1919, realizada em Paris, após a I.ª Guerra Mundial e a declaração do Armistício de Compiégne (Novembro de 1918) reflectiam aquela que era uma das necessidades mais urgentes no contexto político europeu: o regresso imediato da Paz à Europa depois de conflito armado que, em 1914, foi pensado para ser resolvido numa questão de meses e viria a degenerar numa guerra até então sem precedentes. Mas se esta era uma das necessidades primordiais subjacentes às negociações de paz, o jogo diplomático reflectia, simultaneamente, uma combinação de poder político, económico, militar e, sobretudo, muita ambição. Foi, de facto, na combinação destes poderes que se baseou a autoridade dos "Quatro Grandes" - Estados Unidos da América, Império Britânico, França e Itália -, circunstância que relegaria para os restantes países signatários um papel meramente cerimonial, ao mesmo tempo que conferiria ao texto do tratado uma legitimidade superior às principais potências aliadas que, na qualidade de principais potências vencedoras, sentiram uma necessidade urgente de negociar os suas condições de paz. Embora este conjunto de poderes não estivesse igualmente distribuído pelas principais potências, o presidente norte-americado Woodrow Wilson (1856-1924) combinava-os e, não querendo cair num exagero forçado de considerar que a I.ª Guerra Mundial foi uma benção para os Estados Unidos, não devemos deixar de considerar que constituiu a primeira pedra de toque que marcaria definitivamente a posição hegemónica dos Estados Unidos face à Europa: a Guerra não teve, de facto, as proporções devastadoras que teve na Europa, onde se desenrolaram a maior parte dos confrontos; apenas cerca de 48.000 soldados norte americanos morreram durante a Guerra, um número correspondente a apenas 6% das mortes britânicas. Deste modo, W. Wilson e a combinação de poderes que soube concretizar, desempenharam um papel crucial, não só na elaboração do armistício de 1918, mas também nas futuras negociações de paz, algo baseado na apresentação de uma ordem de trabalhos concreta - "Quatorze Pontos" - que se desejavam ser os principais alicerces de uma nova ordem internacional. Contudo, todos os delegados diplomáticos presentes na Conferência de Paz tinham a sua ordem de trabalhos concreta bem como a consequente ambição de apresentá-la e concretizá-la em nome da defesa de interesses nacionais próprios. Neste sentido, a Conferência de Paz haveria de tornar-se numa amálgama de propostas, muitas delas nitidamente conflituais e confusas, evidência inicial de um dos factores que motivaram a falência do seu paradigma: o exacerbado sentimento nacionalista (ainda demasiado preso aos modelos oitocentistas de construção do Estado-Nação) associado a uma incapacidade de negociação de interesses no quadro internacional.
Não devemos, contudo, ser laxistas ao ponto de considerar que todas as negociações se encetaram em meros actos cerimoniais de diplomacia de salão. De facto, as principais negociações obtidas tiveram consagração no Tratado de Versalhes que se constituiria, a partir de agora, como o novo paradigma nas relações internacionais ao pretender construir um novo equilíbrio global em dois vectores: por um lado, através do urgente e definitivo regresso da Europa à Paz e, por outro lado, através da construção de um modelo onde se pudessem desenvolver verdadeiras Democracias Liberais. Aliás, uma das principais ideias de W. Wilson ao pretender criar uma "Liga das Nações" era, não apenas a manifestação de uma nova corrente em termos de política internacional, mas também a constituição de uma organização mundial e não apenas europeia que fosse ao encontro da seguinte máxima: "(...) the world safe for democracy." (excerto de uma pronunciação dirigida ao Congresso em 2 de Abril de 1917). O que se pretendia, neste sentido, era a criação de um organismo internacional onde a prossecução da segurança permitisse o desenvolvimento das democracias. Neste enquandramento, e ao abrigo de um novo princípio de auto-determinação das comunidades (uma das propostas de W. Wilson), os Impérios Alemão, Austro-Húngaro, Russo e Otomano foram desmembrados e adoptaram modelos baseados no sufrágio universal e em formas republicanas de governo.
Centremo-nos, agora, no que nos trouxe até aqui: as negociações de Paz em torno da questão alemã. O governo imperial alemão, ao reconhecer uma incapacidade de prosseguir o esforço de guerra pediu, em 1918, um armistício; viria a ser assinado em Novembro do mesmo ano em Compiégne e poria termo efectivo aos confrontos bélicos. A Alemanha, ao reconhecer a incapacidade de prosseguir o esforço de guerra reconheceu, na prática, uma situação de sujeição em termos de negociação diplomática e, nesse sentido, as Potências Aliadas tomaram como declaração de princípio que a Alemanha seria declarada como parte culpada pelo que, o Tratado de Versalhes foi apresentado aos alemães em Maio de 1919 sem qualquer intervenção negocial da Alemanha. A prática diplomática, mais do que sintomática do que estaria para vir, foi vexatória: os delegados alemães na Conferência de Paz foram mantidos em condições humilhantes e sem qualquer capacidade de decisão ou negociação, tanto mais que, o chefe da missão diplomática alemã, o conde Ulrich von Brockdorff-Rantzau (1869-1928) terá afirmado: "Aqueles que assinarem este tratado, assinarão a sentença de morte de muitos milhões de alemães: homens, mulheres e crianças." Apesar da afirmação, o Tratado viria a ser assinado por toda a delegação alemã e o seu Ministro dos Negócios Extrangeiros, Hermann Müller (1876-1931), na grande Sala dos Espelhos do Palácio de Versalhes. O acto era simbólico: ali fora proclamado com solenidade o Império Alemão em 1871 após a vitória alemã na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871); ali seria - apesar das severes críticas de W. Wilson - humilhada a Alemanha e culpada por todas as desgraças europeias.
As imposições feitas à Alemanha tinham como principal objectivo enfraquecer o país territorialmente, militarmente e economicamente. De facto, a médio / longo prazo, este ideal sobre o qual a Paz deveria assentar no engrandecimento dos vencedores e na humilhação dos vencidos, revelar-se-ia desastroso para a própria manutenção da Paz na Europa. Foram países como a França e a Grã-Bretanha que os defenderam. Por um lado, a França - o país que mais sofreu com a ocupação alemã e onde grande parte dos confrontos militares se desenrolaram -, apenas conseguia conceber uma Paz nos termos de uma Alemanha humilde e enfraquecida. Georges Clemenceau (1841-1929) viveu a ocupação alemã de Paris em 1871 no quadro da Guerra Franco-Prussiana e o comandante supremo Marechal Ferdinand Foch (1851-1929), sabia quão perto a França esteve do colapso em 1918 e, portanto, as suas ideias de Paz residiam em manter uma Alemanha tão fraca quanto possível; por outro lado, a Grã-Bretanha não se mostrou generosa em relação à Alemanha: David Lloyd George (1863-1945) prometera ao seu eleitorado "espremer a Alemanha até as pevides guincharem" e, num plano distinto, a dinastia reinante regenerar-se-ia e deixaria de intitular-se Dinastia de Hannover para passar a intitular-se Dinastia de Windsor numa tentativa clara de afastar a herança germânica da Casa Real britânica. 

Bibliografia de referência:
 - KISSINGER, Henry, Diplomacia, Lisboa, Gradiva, 1994;

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Diários pessoais da Rainha Victória, agora online!


Retrato de coroação da Rainha Victória por George Hayter (1792 - 1871) - 1838.


Foi no passado dia 24 de Maio que foram lançados em primeira mão, disponibilizados online  e apresentados pela Rainha Isabel II, toda a colecção de diários pessoais pertencentes à Rainha Victória (1819 - 1901). Apresentados por ocasião de uma dupla comemoração - o aniversário de nascimento da Rainha Victória a 24 de Maio de 1819 e o Jubileu de diamente da actual monarca, Isabel II - toda a colecção de diários pessoais, colocada em formato digital e dactilografado numa página própria, permite concretizar, não apenas um retrato biográfico da soberana, mas também uma completa história do seu reinado que, a par de Luís XIV (1638 - 1715), se concretizou como um dos mais longos reinados da Europa. Os diários disponibilizados online cobrem todo o período de 1832 a 1901 e abrangem episódios como a infância da Rainha Victória, a ascensão ao trono, o casamento com o Princípe Alberto (1819 - 1861) e os seus dois jubileus de reinado.

Para além da digitalização dos diários, está também disponibilizada uma colecção importante de ilustrações da autoria da própria rainha bem como uma secção destinada a recursos bibliográficos. Permito-me ainda destacar, no fim, a excelência deste projecto que concretiza de forma prática, não só a importância da disponibilização de recursos online para os historiadores, mas também a excelência de um projecto de serviço público realizado em nome da cultura e da História.

Devo um agradecimento final à Rita Rente, que me deu a conhecer este projecto.

Outros links de interesse:

quarta-feira, 20 de junho de 2012

História em crise? O "Fim da História": uma verdade ou um mito?


O que temos desde a Historiografia dos Annales é um modelo que, querendo propor algo para lá da proposta positivista, vai incluindo progressivamente uma valorização das estruturas e das variáveis que se mantém no jogo da sociedade. Assim, visão da própria História no final do século XX, corresponde a uma História que se pretende construir de forma mais humilde porque prescinde de alcançar a objectividade e a verdade absolutas, não só porque a perspectiva de uma verdade absoluta em História corresponde a um movimento ilusório de alguém que pretende construir um passado não vivido, mas sobretudo porque a verdade se trata de uma abstracção e de uma construção imagética das realidades que parte de nós próprios. Neste sentido, nunca teremos uma imagem igual projectada por dois historiadores diferentes. Mas se esta História é ao mesmo tempo "humilde", é também "ambiciosa" quando se propõe em abarcar todas as dimensões históricas da Humanidade seja em que época for (algo para que contribuiu, não só uma mudança de paradigma intelectual motivada pela emergência - e consequente reivindicação de estatuto científico próprio - de áreas como a Sociologia ou a Antropologia, mas também uma consequente renovação prática e propedêutica de ciências sociais tradicionais, como a História) e não devemos esquecer-nos, que nestes dois pólos de acção da História, uma época não é essencialmente uma questão de tempo, mas antes uma noção do novo eterno.
Algo assim concebido, iria reflectir-se num aumento da especialização histórica e o que temos é, portanto, uma contradição; um paradoxo, com uma proposta que se assume e se ambiciona como globalizante. A tendência para a especialização num tempo mais restrito e num tempo mais curto associam-se a uma inclusão e diversificação, no campo da História, de métodos concretos adaptados às necessidades de estudo. Deste modo, no limiar do década de 80, o que temos é uma História em "crise"; se preferir-mos, uma História céptica: a publicação de um editorial subordinado ao título "Émiettement de l'histoire" congrega, de um modo geral, o novo sentimento em relação à História, não só ao confirmar, na prática, o dilema entre uma objectividade pretendida e o próprio historiador, mas também ao atestar um movimento geral de passagem de uma história globalizante - ainda presa ao modelo estruturalista - para uma micro-história. É neste contexto que voltam ao palco antigas reflexões sobre a História, sobre o que deve ser, sobre os seus fim, sobre o seu próprio fim.
De tal modo, a década de 80 do século XX manifestou-se no quadro histórico, de um modo geral, como um período de cepticismo, sentimento impulsionador e manifestador de velhas teorias: falamos agora do Fim da História. Proposta e construída por Georg Friedrich Hegel (1770 - 1831) no século XIX, o modelo teórico do fim da da História é retomado no último quartel do século XX para o fazer corresponder a um sentimento de crise da História e outras ciências sociais. Assim, o que aqui está postulado é algo que corresponde a um certo pessimismo do pensamento hegeliano e, como tal, o que se sugere é o fim dos processos históricos como processos de mudança e evolução, algo que aconteceria no preciso momento em que a Humanidade atingisse um ponto de equilíbrio. Quando retomada no final do século XX - 1992 - com Francis Fukuyama (n. 1952) em "The End of History and the Last Man", a teoria adquiriu, em concreto, carácter verificável, quando se convencionou que a queda do Muro de Berlim (1989) corresponderia ao momento final em que a destruição do totalitarismo soviético seria traduzido no último estágio de evolução da Humanidade com o triunfo da Democracia como forma definitiva de governar o Homem. De facto, quem se iludiu de que a queda do Muro de Berlim seria a resposta final dos anseios do Homem por um tempo de felicidade perpétua e perenidade da democracia, talvez tenha cometido um erro. Enquanto existirem Homens na Terra, mesmo que um grupo reduzido, haverá interesses e motivações em jogo e a História prosseguirá; não porque seja algo inerente ao próprio tempo, mas porque a História constitui a melhor forma de o Homem, esse misterioso ser que tem uma necessidade constante de encontrar-se e saber quem é, construir a sua identidade, não só individual, mas também colectiva. E é sobretudo nestes tempos de imposição e de afirmação de poderes subtrefúgios que devemos ter a consciência de que a Democracia não constitui um dado adquirido, mas que é antes uma construção em movimento e um trabalho de todos os dias. A derrocada do "velho monstro" soviético, se algo demonstrou ao Homem foi, não apenas o final, mas a determinação firme em colocar termo a uma forma de opressão. Mas ter vontade talvez não seja suficiente, e que espécie de seres humanos seríamos nós ao ter a pretensão de achar como acaba a História mesmo antes de ela ser contada? A minha geração tem um século pela frente; seria extremamente condenador pensar que tudo terminaria aqui.

Referências bibliográficas:
 - GARDINER, Patrick, Teorias da História, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.